segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Tocados pelo privilégio (o xarope de sempre, para o cliente de sempre…), um atentado à saúde pública

1ª Parte

Massificou-se nos nossos tempos a consideração comparativa, de recorte pouco elegante pelo tom pejorativo, que os países geograficamente concatenados a um circunscrição espacial supra-nacional, a saber, a Europa do Sul, padecem de problemas (muito para além de conjunturais, mas isso sim, matricialmente) estruturais, genuinamente idênticos.

Valha a verdade, aqui, como na larga escala das temáticas atinentes às ciências sociais, nem tudo é tão preto, nem tão branco, para que sejam fornecidas certezas absolutas. Hoje, como ontem verificamos que predominam as zonas cinzentas, o que em jeito de ponto de rota possibilita arreigar a um paralogismo entre a classe médica italiana, sua presente posição em sede social respectiva, e seus homólogos portugueses, que em terras lusas vão, confortável e incessantemente somando vitórias. Senão vejamos… enquanto aqueles se prestam a manifestações, projectando em greves o seu descontentamento fruto dos cortes salariais, congelamento na progressão da carreira, dispensas e decorrente aumento, nessa mesma classe, do desemprego (na ordem, estima-se, das quatro dezenas de milhar), em Portugal o quadro que se vislumbra (ainda que aquele não se entenda ideal), celebra a desvirtuação, depravação dos valores, enfim, numa conjugação de cores degradante… Degradante, in casu, para uma classe política que por labirintos de retóricas opacas se (ou melhor, nos) perde, enquanto ao mesmo tempo, nos corredores de singulares (tacitamente, ora expressamente, consabidos) interesses de singulares categorias profissionais se verga (pena é, que não quebre).

Uma vez aqui chegados adiante-se: o el-dourado profissional foi encontrado em Portugal (ou será que trabalhado?), trata-se nem mais da classe dos médicos, cujos inertes guardiões se distinguem sem esforço (tamanha a desfaçatez preconizam), bem assim, ilustrativamente se enumeram:
os sucessivos bastonários dessa ordem, seus sindicatos, os docentes com funções de responsabilidade acrescida e, primacialmente, os ministros da saúde, porquanto detentores do último ditame, dotado de “imperium”, desencadeador de mudanças que urgem a surgir. Constatada tal inoperância, oriunda da anteriormente proclamada cedência ao singular interesse da classe médica, apelidam-se, desta feita, aqueles cujo particular ministério lideram, de protagonistas acéfalos, conscientemente olvidados do papel que comunitariamente têm (e não somente devem, quando isto deveria bastar!) de cumprir. Ora, optam, assim sendo, pelos trilhos traçados pelos interesses corporativamente balizados.

Neste quadro, fora aqueles cujo interesse não se gruda aos persistentes problemas  que em passo contínuo nos assombram, deparamo-nos, não raras vezes, ante erros estruturais tão crassos quanto descabidos, que (uma vez mais) o bom senso comum sanaria, dispensando para o efeito, faraónicos esforços.




A classe médica, o curso de medicina, foram colocados em tão alto patamar, que pareceram sagrados ao comum dos mortais (note-se bem o privilégio que será para todos nós, lidarmos, enquanto pacientes, com estes magnânimes profissionais!). De tal forma que os móbeis que deveriam humildemente servir de adubo para arvorar uma futura candidatura (e antecedente empenho no estudo) e ingresso numa qualquer faculdade de medicina no nosso País, foram tendencial e probabilisticamente transvertidos. Por outras palavras, as razões que se crêem idóneas para que um jovem (em sentido lato) almeje preencher as vestes de um médico, por exe o intento basilar de ajudar directa ou indirectamente quem requer de sabedoria medicinal, ou mediante participação em pesquisa inalienável para uma solução/cura de certa doença, e enfim, toda uma panóplia de outras valorosas formas de cumprimento de tão nobres objectivos, serão postos em risco, pela substituição (natural no sentido de provocar a subida do instinto de sobrevivência, conquanto ignóbil pelo societário consentimento de que tal aconteça) equacionada por transformação do diploma desse curso (que se reza pio!) em uma passagem que confere acesso a um oásis laboral português, exclusivo e pelas cúpulas protegido.

Mais claro ainda: ao permitir a escassez de vagas verificada, estilizando a oferta (de médicos) perante (cada vez) maior procura (de pacientes, arribados agora ao estatuto de clientes, como fontes de lucro) o curso torna-se procurado não necessariamente pelas sobreditas motivações, compaginados por quem apresenta o perfil e postura adequada, mas, prevê-se (e constata-se na realidade) em crescendo por quem esquadrinha status social e estabilidade laboral, altas fontes de lucro 100% garantidas!

Para cúmulo de males, multiplicam-se as perigosidades deste proteccionismo predador, na exacta medida em que se acrescentam os testemunhos de estudantes de medicina e médicos recém-licenciados, orgulhosamente firmando o ingresso no curso enquanto barreira de maior dificuldade, sendo as ulteriores (finalização de modo conveniente do curso, adequado tratamento dos pacientes, afastar longinquamente a negligência) um cabo de menor turbulência. Como é próprio do exposto, a colocação nos seguintes termos não parece (mas o devia ser) caricatura… os demais estudantes (em restantes cursos) encontram-se entre mãos com a perspectiva de, além de fazer o curso, o fazer com o melhor rendimento possível, coadunados a uma incerteza (mesmo aquando do maior proveito nos estudos) de empregabilidade laboral! No contrapólo restam aqueles, que tão-somente necessitam de lograr o diploma, sendo natural que mesmo com nota mínima as portas de um qualquer centro de saúde se lhes abram, sem necessidade de prestar contas durante o exercer de funções, degradando-se a prestação do serviço de saúde. São as leis de mercado coadunadas à natureza comodista do ser humano, tendencialmente facilitador, em especial quando não pressionado ou alicerçado numa convicção estruturante de serviço público, qualquer seja a natureza que se lhe reveste.





Criou-se uma elite, deturpou-se o critério de aceitação, que em mais do que em qualquer outro curso deveria ser estabelecido de acordo com indícios de benfeitoria, como se disse, postura, predisposição (não desprezando em nada o importante elemento de esforço fundamental, o estudo).


2ª Parte

Todos os anos, confrontados com facto de que o curso de medicina não quebra passo, para desespero de muitos e variados, enquanto aquele que maior média requer; nos presenteiam os guardiões da classe profissional dos médicos, suas razões para ela se manter nessa teimosa e surreal fasquia. Entre as razões difundidas lá se encontrará a afirmação de que não existe falta de médicos em Portugal, gizando mesmo o contrário… Em seu crer, a carência dever-se-á, portanto, a uma má concebida estruturação do sistema, que se revela inapto ao aproveitamento aceitável dos recursos humanos. Pior, sustentam ainda que uma eventual anuência de aumento de vagas desembocaria, de imediato, na precarização da situação laboral dos médicos existentes…

Ora, que afronta! Têm os médicos alguma prerrogativa intelectual que lhes permita visionar, salientar, factos que à luz dos demais cidadãos traduzem uma constante no seu quotidiano, na sua realidade? Que pensam aqueles da actual situação de mercado laboral destes? Será que as restantes classes profissionais conseguiram impedir, ou melhor, estancar por completo a proliferação de cursos, amiúde, em privadas sem critério de exigência devido, impulsionando a multiplicação de diplomados nessas áreas? Bom… veracidade acima de tudo: Não. E de contrário? Puderam os médicos fazê-lo? Mesmo quando o mercado urge em contratar “doutores” da Venezuela, Angola, Moçambique, Ucrânia (e saberá Deus de onde, como e em que termos!)? É certo que, ontem, como hoje, fizeram-no, fazem-no, e continuarão a fazer!     

Adiante! Não obstante tudo isto, afastando a mira deste procedimento erróneo que encerra a dualidade de critérios (médicos para um lado… tudo o resto, para outro), que por muito esforço que empregue para sua compreensão, insisto em não o conseguir… a gota final respingou na presente semana (primeira de Novembro). Antecipo desde já, o tempo torna o excesso demasiado evidente para ser suportado toleravelmente, e como tal, não será com paninhos quentes, de que se mascaram argumentos de desenvolvimento pueril, que a colectividade deixará de rasgar os véus que ocultam a verdade.

Em realce são deixadas as recentes considerações tecidas por Ana Jorge, Ministra da Saúde, membro do Governo PS, que em período de amplo arquejo societário, onde se procede (talvez não) tendo em vista a contenção de modo a sanear as finanças públicas e dos particulares, produzindo um corte geral nas progressões, salários, e acumulações de fontes de rendimento (pensões, por vezes várias; subsídios em aditamento de salários) eis que conservaram o melhor desfecho (não anunciado) para um adulado fim… declara-se (pela boca de uma médica, coincidência, ou não, quem sabe?) a excepção, pois está claro, aos médicos, em seu paraíso intangível: Podem aqueles médicos presentemente reformados, voltar ao activo, sendo garantido que existirá o aditamento à pensão que hoje auferem, de um vencimento, salário, por inteiro. Voilá, Justificação? Sem novidade: a “comprovada falta de médicos”. Com profissões assim, quem precisa de adivinhar a chave do euro-milhões?    

                                                                                       Carlos M. G. Martins

1 comentário:

  1. Excelente texto e excelente análise nele incluída. De facto, em Portugal, criaram-se umas profissões paraíso a que todos deviam poder ascender.

    De resto, um excelente blogue com textos verdadeiramente interessantes de ler. Cá voltarei.

    Abraço.

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